Cinco Cinco #2: Pelé jogou na Europa
Pelé representa o Sol do futebol brasileiro na Era de Ouro
Nenhum debate cansa mais do que as variantes de “O Maior Jogador/Goleiro/Meia/etc. de Todos os Tempos”. Com um gênio recém-campeão do Mundo (Messi), a conversa se recolocou, e resultou em besteiras como esta:
Vamos deixar o debate sobre o GOAT (Greatest of All Time), nascido deslocado, cansado e anacrônico, e focar em apenas um quadrante do post da ESPN. O que é apontado como “defeito” de Pelé? “Nunca ter jogado na Europa.” Difícil saber por onde começar…
Aos fatos: Pelé jogou na Europa. Não, Pelé não jogou por clube europeu, nem menos por seleção europeia, mas sim, jogou e venceu demais na Europa, onde equipes se enfileiravam para basicamente perder, fosse do Santos, fosse da seleção brasileira.
Para começo, 1958. Com 17 anos, Pelé foi campeão mundial com protagonismo técnico na Copa do Mundo realizada na Suécia, com atuações de destaque pela seleção brasileira contra União Soviética (Fase de Grupos, 2-0), País de Gales (Quartas-de-Final, 1-0, gol dele), França (Semifinais, 5-2, três gols dele) e Suécia (Final, 5-2, dois gols dele). Como registrou Marcos de Castro:
Nunca mais haveria fenômeno igual numa Copa do Mundo. Um menino de 17 anos entra como titular, joga só quatro vezes e acaba artilheiro do seu time.
No total, pela seleção brasileira, Pelé enfrentou seleções europeias em 44 oportunidades. Com ele, o Brasil venceu 30 desses jogos, empatou 10 e perdeu apenas 4. Um quarto desses jogos foi em Copa do Mundo (11): 9 vitórias (entre elas as finais de 1958, a já relatada Brasil 5-2 Suécia, e 1970, Brasil 4-1 — em que abriu o placar de cabeça, ajeitou de cabeça para Jairzinho no 3-1 e achou um passe genial para a bomba de Carlos Alberto Torres no 4-1), e apenas 1 empate (Brasil 0-0 Tchecoslováquia, em 1962) e 1 derrota (Brasil 1-3 Portugal, de 1966). Nesses dois últimos jogos, Pelé só foi parado na base da pancada.
Pelo Santos, de 1959 em diante, Pelé jogou e venceu em gramados europeus em dezenas de oportunidades, no mais das vezes contra os “melhores de lá”. Pois na Era de Ouro do futebol brasileiro (1958-1970), afora um breve interregno inglês, os melhores do mundo jogavam no Brasil, vestindo camisas de clubes brasileiros.
Entre maio e julho de 1959, o Santos jogou 22 partidas em gramados europeus, com 13 vitórias, 5 empates e 4 derrotas, numa agenda insana que até jogos em dias consecutivos e um confronto com o Botafogo (4-1, pelo Troféu Teresa Herrera) propiciou. Dos participantes da Copa dos Campeões Europeus da temporada 1958-1959, Pelé enfrentou naquela excursão: o campeão Real Madrid (3-5); o representante belga eliminado nas Quartas-de Final, Standard Liège (1-0); e o representante português eliminado nas Oitavas-de-Final, Sporting (2-2). Num intervalo de dois dias (26/06 e 28/06/1959), naquele mesmo tour, Pelé empilhou quatro gols na terceira colocada da Série A italiana, Internazionale de Milão (7-1, placar final), pelo Torneio de Valência, e mais dois gols no recém-coroado campeão espanhol, Barcelona, num amistoso (5-1, placar final, tendo como adversários o atacante brasileiro Evaristo de Macedo e os companheiros húngaros Kocsis e Czibor). Só Pelé, sozinho, marcou 28 gols na sequência de 22 partidas.
No meio do ano seguinte, o Santos de Pelé voltou à Europa e, dentre 18 partidas, só perdeu duas (0-3 Fiorentina, vice-campeã italiana, e 3-4 Barcelona, semifinalista da Copa dos Campeões da Europa). Venceu: o vice-campeão europeu, o alemão Eintracht Frankfurt (4-2); o campeão belga, Anderlecht (6-0); o campeão francês, Stade de Reims (5-3); e o terceiro colocado na liga francesa, Racing Club de Paris (4-1). Nos 18 jogos, Pelé marcou 24 gols.
Em 1961, outra excursão de meio de ano, em que o Santos, de novo, enfrentou clubes recém-saídos de suas ligas e torneios oficiais: contra o campeão belga, Standard Liège, um empate (4-4); contra o vice-campeão francês, Racing Club, duas vitórias (6-1 e 5-4 — na segunda oportunidade, pelo Torneio de Paris); na Itália, num torneio que levava o nome do país, venceu a campeã italiana, Juventus (2-0), diante de 60 mil pessoas, a quinta colocada na Série A, Roma (5-0), para cerca de 100 mil pessoas, e a terceira colocada na Série A, Internazionale (4-1), para incríveis 110 mil pessoas; na Grécia, venceu o campeão da liga local, Panathinaikos (3-2) e perdeu para o vice, Olympiakos (1-2), que, de tão empolgada — e honrada — a torcida, fez incluir em seu hino quase duas décadas depois o seguinte verso: “Pelé e Santos ainda lembram de você”. Em torno do meio da viagem, o Santos enfrentou o recém-consagrado campeão europeu, o português Benfica, pelo já citado Torneio de Paris: contra o time de Coluna e Águas, do ascendente Eusébio e do treinador Bela Guttmann, triunfou o Santos de Pelé, Coutinho, Pepe & Cia. (6-3). No giro europeu de 1961, Pelé assinalou 22 gols em 15 jogos, o mesmo que Coutinho no total de 19 partidas da excursão.
No ano seguinte, o Santos voltou a enfrentar o Benfica em solo europeu, mas dessa vez pelo Mundial Interclubes, reunindo o campeão da Libertadores da América (sobre o Peñarol) e da Copa dos Campeões Europeus (sobre o Real Madrid). Foi um baile de 5-2 do Santos sobre o Benfica no antigo Estádio da Luz, em Lisboa, com três gols e uma assistência de Pelé, naquela que ele considerou a sua maior atuação na carreira — o jogo chegou a estar 5-0 para o Santos. E isso depois de um 3-2 no jogo de ida, em que Pelé já havia marcado duas vezes no Maracanã.
Em 1963, Pelé teve um ano “regular” na Europa: no meio do ano, venceu três partidas na Alemanha, uma na Itália (4-3 na Roma) e, de resto, perdeu em campo para gigantes (0-2 Barcelona, 0-2 Internazionale, 0-4 Milan, 3-5 Juventus). Em outubro, voltou à Europa para enfrentar o Milan, de Mazzola e Amarildo, na partida de ida do Mundial Interclubes: Milan 4-2 Santos (os dois gols marcados por Pelé). Com uma distensão muscular, não jogou a volta (Santos 4-2), nem o jogo-desempate (Santos 1-0), ambos num Maracanã com média de 140 mil presentes — Santos campeão mesmo assim, pois, além de Zito (outro desfalque) e Pelé, o alvinegro praiano era constelação: com Gilmar, Mauro, Mengálvio, Dorval, Coutinho, Pepe e Almir Pernambuquinho, substituto do maior jogador do mundo. Pelé tinha, nessa altura, apenas 23 anos de idade e ainda enfrentaria o Milan mais duas vezes (1-1 e 0-1 em 1965).
E assim seguiu, com duelos com europeus até o fim da passagem de Pelé pelo Santos — ainda que com menos frequência do que na janela entre 1959 e 1963. Alguns adversários se tornaram frequentes a ponto de criar rivalidade, caso da Internazionale, que enfrentou o Santos por nove oportunidades em onze anos, com direito a batalha campal (Santos 0-1 Inter, em um “amistoso” em Nova York, em 1967) e decisão (Inter 0-1 Santos, gol de Toninho Guerreiro no rebote de uma cobrança de falta de Pelé, na Final da Recopa de Campeões Intercontinentais, competição iniciada em 1968 e decidida em Milão, em 1969).
Pelé jogou na Europa e jogou contra europeus — triunfou na grande maioria das vezes. Só não jogou por um clube europeu porque ele e o Santos não quiseram. Conta-se que Internazionale, Milan, Juventus, Real Madrid e Manchester United tentaram — não levaram porque Pelé, no fim das contas, não precisava sair para realizar seus objetivos pessoais e esportivos (entre eles, jogar em altíssimo nível e ficar mais perto da seleção brasileira, que privilegiava atletas em ação no Brasil).
Para ilustrar:
Em 1959, cinco anos depois do título mundial da Alemanha Ocidental na Copa de 1954, dezessete campeões mundiais na Suíça atuavam no conjunto do futebol alemão, que até então era dividido em ligas regionais: Eckel, Liebrich e Fritz Walter (Kaiserslautern), Bauer e Mai (Bayern de Munique), Biesinger (Augsburg), Kwiatkowski (Borussia Dortmund), Schäfer (Colônia), Pfaff (Eintracht Frankfurt), Herrmann (FSV Frankfurt), Erhardt (Greuther Fürth), Kohlmeyer (Homburg e Bexbach), Metzner (Kassel), Molock (Nuremberg), Kubsch (Pirmasens), Rahn (Rot-Weiss Essen e Colônia) e Klodt (Schalke 04). Em 1963, cinco anos depois do primeiro título do Brasil, na Copa de 1958, e um ano depois do segundo, na Copa de 1962, treze campeões mundiais disputavam o Campeonato Paulista: Gilmar, Mauro Ramos, Mengálvio, Zito, Pelé, Coutinho e Pepe (Santos), Djalma Santos, Zequinha e Vavá (Palmeiras), Bellini e Jurandir (São Paulo) e Oreco (Corinthians). Outros oito disputavam o Campeonato Carioca: Nilton Santos, Zagalo e Garrincha (Botafogo), Castilho, Altair e Jair Marinho (Fluminense), Zózimo (Bangu) e Dida (Flamengo).
Pelé representa o Sol do futebol brasileiro em sua Era de Ouro, quando os melhores do mundo jogavam aqui.
5555555555555
A Resiliente Copa do Mundo Antes da Copa do Mundo começar, muito se tratou da perda do papel da Copa do Mundo como reveladora de “novidades” das escolas do futebol mundial. A tese, com que sigo concordando, é a seguinte: com a globalização do acesso às informações sobre competições, clubes e jogadores, cada vez mais concentrados em um pequeno conjunto de ligas, sobra pouco ou nenhum espaço para um choque tático como o propiciado pela Holanda e seu “Carrossel” na Copa de 1974.
O que vemos de tática na Copa é uma continuação, concentrada, agitada por outras paixões, dos duelos de ideias que se desenrolam pelo menos uma vez por semana nas grandes ligas, sob a batuta de treinadores do naipe de Jürgen Klopp (Liverpool) e Pep Guardiola (Manchester City). Em outras palavras: a Copa do Mundo é, no presente, mais festival do que concílio.
Se a Copa do Mundo já perdeu, há algumas edições, muito da capacidade de nos chocar com ideias, ela oferece, como nenhuma outra competição, um encontro entre diferentes culturas de futebol. Essas culturas são compostas de traços que se refletem não apenas de torcer e “vestir a camisa”, mas também na maneira de os atletas executarem o básico do futebol: dominar, passar, chutar, lançar e driblar, entre outros pequenos gestos repetidos em série ao longo de uma partida. Essas ações refletem diferentes processos de formação, tanto aqueles estabelecidos nos clubes e escolinhas como aqueles “informais”, das peladas e bate-bolas que nos acompanham desde a infância. Nenhuma pelada, por mais próxima, é igual a outra: em cada uma reina um tique, um jeito, uma pegada — e, quanto mais distante uma pelada da outra, mais elas tendem a divergir como experiência.
Dei-me conta de um fato óbvio vendo, por trabalho, as 64 partidas da Copa do Mundo do Catar, e o fato é este: ainda existem jogadores brasileiros e argentinos, uruguaios e equatorianos, croatas e alemães, marroquinos e franceses. Ainda bem.
A globalização do futebol não alterou a fluência do meia e do atacante brasileiro para o um-contra-um face aos marcadores. Não tirou dos mexicanos a tendência a passar ou a lançar “fatiando” a bola, de forma a fazê-la voar bem rente ao chão, até chegar ao alvo. Não privou os croatas do gosto pelas tabelas, quase de futsal, que evocam outras eras do futebol dos Bálcãs, os tempos dos “brasileiros da Europa”. Não drenou dos argentinos a habilidade injetada de energia e de engano, refletida como em nenhum outro lance na corrida de Messi para fazer de Gvardiol um “joão” e assistir Julián Alvárez no terceiro gol da semifinal contra a Croácia. Não livrou os franceses dos toques contados, quase com “nojo”, de Zidane e de Henry, lá atrás. Não quebrou o longo fio que une, no futebol marroquino, o maestro driblador e passador Mustafa El Haddaoui, astro da Copa de 1986, ao também driblador e passador Ounahi, destaque da Copa de 2022. Cada seleção agrega um conjunto de atletas que, no mais das vezes, acha-se no que parece irrisório, comezinho, cotidiano — o semiautomático, o “simples” que vem ditado por uma longa cadeia de práticas e formas de socialização no esporte.
É claro que, pelas redes da globalização, um português como Cristiano Ronaldo pôde influenciar o então menino francês Kylian Mbappé, como o próprio craque hoje no Paris Saint-Germain indicou no início da carreira. Essas "pontes” ajudam a renovar culturas de futebol, em diálogo com uma identidade passada adiante, de colega em colega, de adversário em adversário, do campo de bairro ao maior estádio da cidade. O global renova o local, que alimenta o global, e assim segue o baile.
Para além da tática, o espetáculo da Copa nos nossos dias exibe seu vigor e sua diversidade na execução de pequenas ações. Que a sanha de padronizar a formação de jogadores pelo mundo não mate essa diferença.
5555555555555
Pino Versiona O músico argentino Marcos Arocena vem lançando há meses versões de canções de torcida em voz e violão. A imensa maioria dos cantos é de origem sul-americana e cobre tanto as seleções quanto os clubes (sobretudo argentinos e uruguaios). É tudo muito bom, capaz de melhorar até o "Brasil Olê Olê Olê". (Spotify)
5555555555555
A imagem do topo foi criada por Inteligência Artificial, com os seguintes comandos: “Edson Arantes do Nascimento wearing white shirt white shorts white socks scoring a goal against the background of European landmarks by Candido Portinari”. (Dall-E-2)
Excelente a revisão da carreira do Pelé em solo europeu. Tive o privilégio de acompanhar vários destes jogos nas televisão preto e branco, gravados logicamente. Pelé é inigualável. Quando ia ao Rio com aquele timaço do Santos, ia a qualquer jogo. Contra o Flamengo então era sempre um massacre. Pelé, Coutinho e Edu fizeram a festa dos santistas e também de nós cariocas. Eu tinha duas bolas de futebol com a marca Pelé. Vê-lo caçado na Inglaterra pelos portugueses e com a complacência das arbitragens foi uma lástima. Mas em 70 deu no que deu. Grande Pelé sendo retratado fielmente por um Grande Escritor. Parabéns!